terça-feira, 19 de abril de 2011

A mudança de concepção de mundo através da representação artística infantil



Resumo: É notável a divisão entre as ciências na sociedade ocidental moderna entre os pólos natureza e cultura. Pensando a partir de uma perspectiva antropológica, o presente trabalho visa analisar, no processo de escolarização primária, o ponto de liminaridade em que ocorre a passagem do pensamento organizado de forma sincretica na infância para a consolidação da forma de raciocínio lógico-causal através da representação em desenhos artísticos elaborados no espaço escolar.

Palavras-chaves: Antropologia; educação; infância; escolarização; liminaridade; representações artísticas; raciocínio lógico-causal.


INTRODUÇÃO
______________________________________________________________________

A contemporaniedade busca pensar as relações e as estruturas a partir de uma gama de pluralidades de ideias que em algum momento da histórias já foram pensadas opositivamente, mas que em sua legitimidade só podem ser pensadas em complementação. Por esse motivo a educação, em um sentido amplo, não pode ser voltada a dialogar somente dentro de uma esfera pedagógica até porque o processo de escolarização abrange além das propostas normativas, que tem por finalidade estabelecer uma condição de individualidade e autonomia do ser humano na sociedade ocidental.
O diálogo entre a educação e a antropologia é algo que nasce paralelamente com os movimentos sociais na década de 1970 sendo a antropologia percebida como um saber científico e a educação um saber prático. A pretenção da antropologia em relação a educação infantil já estava presente no final do século XIX por influência do culturalismo que tentava compreender uma possível cultura da infância. Outra ferramenta da antropologia que nos anos 1970 foi atribuída como acrésimo no compreender da educação foi a etnografia que segundo Lévi- Strauss (1970) seria a primeira etapa da pesquisa, anterior a antropologia que seria uma segunda e última etapa da síntese (p.377). Gusmão (1970) ao analisar a relação entre antropologia e educação atenta que o conhecimento a partir de estudos e analises de uma parcela da sociedade pode contribuir para a compreensão de um todo. Para a pesquisadora a cultura se torna, assim, central para a compreensão das práticas humanas, vistas como práticas significantes que distinguem o homem da natureza, o homem do animal e que fundam diferentes sistemas de interpretação da vida . Atualmente existem outras propostas da antropologia em relação ao sistema educacional que obviamente neste trabalho não aparecerá no seu contexto geral, mas que em algumas das discussões seguintes será apresentada.
O objetivo deste trabalho é analisar, no processo de escolarização primária, o ponto de liminaridade em que ocorre a passagem do pensamento organizado de forma sincrética na infância para a consolidação da forma de raciocínio lógico-causal. Através da observação da representação em desenhos artísticos elaborados no espaço escolar, nos propomos a analisar a influência do processo de socialização escolar na construção de percepções infantis sobre o mundo ao redor, e observar de acordo com a faixa etária (através de comparações entre os desenhos feitos) as mudanças no olhar infantil sobre ser humano e suas culturas (tudo o que é construído pelos seres humanos em grupo, sociedade) e natureza (o meio ambiente, características físicas, naturais, inerentes). A metodologia utilizada inclui uma pesquisa de campo em dois espaços educacionais do município de São Carlos (SP), a Escola de Ensino Infantil “Tic Tac Toe”, que trabalha com criança de 3 a 6 anos de idade, e o “Espaço Corporal- Terapia, Arte, Educação”, que faz trabalhos de dança e expressão corporal, com uma perspectiva alternativa, e atinge crianças de várias faixas etárias. Além da análise teórica, o conteúdo prático deste trabalho inclui a realização de entrevistas informais com duas educadoras, acompanhamos a dinâmica das aulas, fizemos registros através de fotografias.

A Concepção de Infância na Sociedade Ocidental

Ariés (1978) ao estudar a história da infância mostra que nem sempre houve essa configuração à respeito do que se caracteriza hoje como período infantil. Na Idade Média por exemplo não haviam preucupações com os direitos da criança e do adolescente ou se quer havia uma distinção de mundo simbólico do adulto e do mundo infantil. A criança era vista como o indivíduo adulto de amanhã, elas participavam da vida adulta e não existia a concepção de privacidade o que permitia acesso total da criança na rotina de vida dos mais velhos. No século XIII houve uma modificação que atribuiu ao adulto o papel de direcionar a criança e desenvolver o caráter e a razão. Neste mesmo século surge aformalização do ensino-aprendizado voltado à infância. Cria-se uma instituição de lugar e reclusão da infância em que há uma metodologia, material e espaço voltado para o púbico infantil. A família passa a se organizar em torno da criança dedicando assim atributos para o desenvolvimnto do futuro adulto.
O que ocorre é uma naturalização do que é ser cirança. Essas relações e forma de percepção são construídas culturalmente ligado a cada época e espaço.
Segundo o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil as crianças possuem uma natureza singular, que as caracterizam como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio (...)durante o processo de construção as crianças se utilizam das mais diferentes linguagens e exercem a capacidade que possuem de terem idéias e hipóteses originais sobre aquilo que possuem desvendar. Caldeira (2009) afirma que a partir que criou-se uma consciência sobre a importância das experiências da primeira infância foram criadas várias políticas e programas que visassem promover e ampliar as condições necessárias para o exercício pleno da cidadania infantil. Através desse preceito cada vez mais há uma busca dos pais em escolarizar os filhos em escolas que apresentem um diferencial e dessas instituições em promover um ensino cada vez mais multicultural atendendo assim as exigências do mundo moderno.




Construção do Pensamento Moderno

A concepção de mundo atual ainda esta ligada as formulações primordiais do movimento iluminista que surgiu ao final do século XVIII. A principal contribuição seria o aparecimento da racionalidade do homem, a sua distinção com os outros animais e consequentemente uma metodologia didática que teve como intuito analisar mais profundamente as diversas esferas da realidade humana. Para a consolidação de um saber, a comprovação de uma verdade, Descartes utiliza-se de uma metodologia que segue uma trajetória linear progressiva. Essa metodologia esta embassada em quatro pressupostos básicos: o primeiro se constitui pela clareza e distinção dos fatos, o segundo esta relacionado a realização de uma análise, ou seja, a análise deve-se constituir por separar as partes de um todo e observá-las analiticamente, o terceiro seria a ordem dos pensamentos, ou seja, o raciocinio deve ser conduzido por uma ordem que vai do mais simples ao mais complexo. E por último a enumeração, que seria o ato de enumerar todos os pontos do raciocínio até ter completa certeza que todos os elementos foram considerados.
Essa metodologia foi de extrema importância para a consolidação de um processo investigativo dos fatos na Idade Moderna. Esse processo de comprovação de uma verdade científica está intrinsecamente ligada à uma proposta estrutural de estudo decomposta, simplificada e gradativa.
A ciência teve outros grandes avanços que mudaram perspectivas atuais de sociedade, indivíduo, relações sociais. O que chama atenção é que a metodologia de investigação cartesiana ainda se apresenta atual em relação a estruturação do pensamento cientifíco. Latour (1994) ao se questionar o que seria a ciência, define-a como uma prática que não se desloca da vida cotidiana e das relações sociais dos cientistas, sendo assim a ciência não pode ser exata em sua totalidade, pois sofre influências do meio. Latour situa o papel do antropólogo no estudo das ciência partindo do princípio da simetria em que o falso e o verdadeiro devem ser tratados da mesma forma, a partir de então, ele afirma que há uma noção assimétrica entre estudar os modernos e os não moderno. Questões objetivas ligada a ciência natural e exata não estão ao alcance da antropologia. Em relação aos não modernos, o pesquisador tem a pretensão de abordar a totalidade (religião, política, social, técnicas...). Para ele é preciso tornar a antropologia capaz de estudar as ciências, ultrapassando os limites da sociologia do conhecimento e, sobretudo, da epistemologia, ou seja, a ciência somente pode se tornar objeto da antropologia quando passa a se constituir como crença. O ideal segundo o antropólogo seria que houvesse uma simetria generalizada, ou seja, não estudar somente o universo subjetivo ou o natural, mas sim a interação entre os dois universos. Latour chama essa interação de naturezas-culturas que seria o objeto da antropologia. Por fim ele afirma que é uma falácia pensar que os modernos conseguem dvidir os dois universos. O que ocorre é que há graus diferentes de sobreposição dessas esferas.
A partir dessa colocação e a relação entre a antropologia e a educação, pode se pensar e tentar compreender em que momento do desenvolvimento humano, o homem passa a pensar de uma forma lógico-racional. Isso quer dizer, em que momento da escolarização o indivíduo deixar de pensar de forma sincretica os dois mundos, natureza e cultura, e passa a dividir os pólos, separar as ciências. Para essa análise foi pensado em outra contribuição teórica antropológica que visa estudar o processo ritual, denominado por Turner (1974) como liminaridade. A liminaridade pode ser entendida como a transição de um indivíduo de um campo de significados para o outro. Assim quando o indivíduo está inserido em um estado A e passa para o estado B, pelo rito de passagem, existe um ponto que ele não esta inserido nem em A e nem em B. Esse ponto designinado como liminaridade seria o definidor do papel social.
O questionamento a partir dessas fundamentações e o que promoveu a questão do presente trabalho pode ser resumida em pensar a divisão epistemológica dos pólos natureza e cultura a partir do momento de transição demoninado liminaridade no desenvolvimento infantil a partir da análise de expressões artísticas.


As Etapas do Desenvolvimento Infantil

O desenho correspode ao modo de ver o mundo, a forma de vê-lo. Observa-se um carater de construção, um carater evolutivo. De inicio as crianças se interessam mais pela criação que é feita a partir do contato do lápis como o papel, que são chamados de Garatujas (FIG.: 1a e 1b). Em geral é entre os 3 à 4 anos de idade em que as figuras começam a ganhar forma. As primeiras que geralmente aparecem são figuras humanas e em segundo lugar são as figuras de animais (FIG.: 2a e 2b). Entre 4 e 5 anos há a conjunção de diversas figuras, elementos animados e inanimados, essas figuras não apresentam uma linha de raciocínio espacial e as figuras muitas vezes são hibridas (fitofórmicas e zoomóficas). Isso significa que o período que vai dos 4 aos 5 anos de idade a criança apresenta uma forma sincretica de representação do mundo (FIG.:3). Valencio (2007) em um estudo sobre o olhar infantil e as representações sobre a Amazônia nos ensina os desenhos como linguagens, expressões de culturas e de percepções do entorno. As conclusões da pesquisa realizada traz informações sobre a diferença de aspectos representados nos desenhos de acordo com a faixa etária, com o meio geográfico de vivência (vive no espaço rural ou urbano), e com aspectos culturais (como o fato de ser indígena, caboclo, não indígena). O pedido feito às crianças foi que representassem a paisagem cotidiana em folhas de papel e fazendo uso de lápis de cor. O exercício foi que as crianças mapeassem mentalmente os seus entornos. Os resultados compreendem dados como o de que crianças que vivem no meio rural têm representaram mais em seus desenhos elementos de caráter do ambiente natural; enquanto crianças que moram em meios urbanos são mais influenciadas pelo entorno televisivo, refletindo muitas vezes elementos do seu imaginário que nunca tiveram contato real. A análise antropológica para o mesmo objeto buscaria resgatar características de categorias como infância, apresentando um contraste crianças-adultos, a fim de relativizar mais as expressões utilizadas.
Em relação a construção do pensamento infantil sobre os fenômenos ditos naturais pode se perceber que é um pensamento que vai se constrindo a partir de experiências sensoriais reais que vão se desconstrindo à medida que cresce o pensamento abstrato que corresponde as explicações dadas como verdade científicas. Um aspecto que caracteriza o pensamento da criança pequena é a forma como ela associa os elementos da sua realidade. É como se ela dispusesse tudo o que conhece em uma folha de papel e relaciona-se esses elementos guiando se de modo subjetivo, principalmente pelas relações de afetividade, suas vivências pessoais ou imaginadas e não pela lógica causal, o que o pensador francês Wallon denominou de pensamento sincrético. É por volta dos 6 anos de idade que a criança passa a representar uma linearidade lógico-causal nos desenhos (FIG.:4a e 4b) que apesar de estar fora do cotidiano e das experiências sensoriais do indivíduo na infância, esta relacionado há uma crença no discurso tanto das pessoas que esta mantém relaçoes de afetividade, como em relação ao agente educador que tem a palavra legitimizada para a criança. È importante notar também que o processo artístico dessas crianças em sala de aula é construído em conjunto e nunca somente individualizado.


Campo
O trabalho foi realizado em dois momentos. O primeiro em um espaço que trabalha a questão da corporalidade e expressão através da dança, e o segundo em um momento de expressão artística em uma escola primária bilingüe, as duas localizadas no munícipio de São Carlos.
A primeira experiência de campo foi realizada no Espaço Corporal, em uma quarta-feira, dia 20 de outubro, em uma tarde que contou com a atividade “Convivendo”, que se propõe a ser um espaço complementar às aulas escolares das crianças, com “atividades lúdicas e artísticas diversificadas, sempre visando interação social e educação global da criança”, de acordo com o sítio da internet. Neste dia que estivemos presentes, a atividade foi a realização de pipas. A professora é quem fica responsável por trazer idéias de atividades, mas a objetivação destas é acompanhada da aceitação das crianças, são elas quem acabam decidindo. Estavam participando apenas duas crianças neste dia, com idades respectivas de 3 e 6 anos. Segundo as mesmas, quando perguntamos sobre o que gostam de fazer, verificamos que é habitual o ato de desenhar, quando elas inventam historias e dialogam com elas ao mesmo tempo em que representam graficamente no papel. A criança de 6 anos disse que adora desenhar, e que quase toda vez que vai pro Espaço reserva um tempo para isso. O menino de 3 anos nos pareceu mais introvertido, não quis conversar conosco, embora falasse normalmente com a professora e com a colega de “Convivendo”. Ambas se referem à professora pelo seu nome, o que nos chamou atenção, pelo aparente distanciamento da relação aluno-professor, talvez porque o clima seja descontraído e não haja a cobrança sobre os alunos, que costuma ser comum em escolas. Sobre a espacialização do local das atividades , não há mesas nem cadeiras, como acontece nas escolas com a presença de carteiras, que funcionam como um controle dos alunos para que não se movimentem pela sala. O chão do Espaço é de borracha, confortável para a realização das atividades, seja para pintar, desenhar, fazer pipas ou outros objetos, e além disso o local propicia uma movimentação saudável para as crianças, dando um ar de liberdade para o exercício de suas capacidades criativas.
A atividade “Convivendo” no Espaço Corporal é acompanhada da “aula” de Dança, e esta sequência é explicada no sítio eletrônico da seguinte forma: “A criança é corpo e movimento em tudo o que faz (...) a dança é tida como forma de manifestação artística que contribui para formação intelectual, física e sócio-emocional do ser humano. (...) Nossa proposta é que a dança seja vivenciada pela criança não só pelo fazer, mas também pelo criar e apreciar. As crianças compartilham ideias, reproduzem movimentos, inventam suas próprias danças, improvisam, observam.” Aqui neste trecho a experiência da dança pode ser relacionada ao papel das representações infantis através dos desenhos, pois as crianças experimentam sensações, criam historias, e conversam entre si enquanto estão desenhando. Segundo a educadora Monique Deheinzelin: “para assimilar a existência das coisas que a cercam, a criança pequena sente a necessidade de explicar o mundo para si mesmo, lança mão das informações que tem acesso em diferentes fontes, depois relaciona tudo isso à sua maneira. (...) O desenho corresponde a um modo de ver o mundo, um modo de saber sobre as coisas do mundo, que é próprio de cada criança, de cada desenhista, algo ali dentro pede passagem pra fora.”
Na segunda experiência de campo, tivemos uma conversa informal com a professora da disciplina de Artes da Escola Tic Tac Toe, explicando o objetivo da nossa pesquisa, e tivemos acesso a desenhos e trabalhos realizados ao longo deste semestre por crianças de turmas e idades distintas. A escola é bilíngüe, o que implica que o ambiente é de diálogo em duas línguas, tanto o português como o inglês, as professoras falam com as crianças em português, frases repetidas diariamente e que elas compreendem, mas à nossa presença as interlocutoras respondiam em português mesmo. Nesse diálogo com a educadora , formada em Pedagogia, descobrimos que semestralmente há uma proposta temática que percorre as atividades ao longo da disciplina de Artes, e a última foi sobre o país África do Sul. A conseqüência disto foram desenhos e realizações artísticas embasadas em um conteúdo de resgate histórico-cultural ao país do continente africano. O relato da professora foi o de que a proposta foi desafiadora, pois acreditava não ser possível falar do país sem citar a influência do apartheid, e que ela pensou muito em como falar sobre esse assunto com as crianças. O que ela nos disse foi que mesmo com questões menos polêmicas, o objetivo é não traduzir sua opinião ou noções pré-estabelecidas, a fim de promover um espaço em que os alunos se sintam estimulados a formularem suas opiniões. Tivemos contato com alguns destes trabalhos artísticos e aqui estão alguns deles, registrados através de fotografias– lembrando que a identidade dos autores continua preservada, nem foi nosso interesse investigar relação de autoria para os desenhos. Nesta representação abaixo, a frase colocada pela professora foi “Como era a convivência entre brancos e negros durante o apartheid?” E o desenho do(a) aluno(a) de apenas 6 anos foi representar a divisão de ambientação para freqüentar banheiros, um para negros e outros para brancos. Não ficou nítido na imagem, mas a criança fez uso da escrita para deixar claro sua interpretação sobre “banheiro para brancos” e “banheiro para negros”.

De acordo com o sítio eletrônico da escola de ensino infantil, o objetivo da disciplina de Artes é que os alunos tenham “a oportunidade de experimentar diversos materiais e diferentes técnicas de pintura, colagens, desenhos, etc.” O que verificamos após o trabalho de campo é que a experiência destes alunos incorpora o contato com elementos de outras culturas e um respeito pela “diversidade” -termo usado pela professora- e um aprendizado que traga para o ambiente escolar características que ultrapassam o campo de vivências deles, mas que ao mesmo tempo aproxima-os de uma tolerância para as diferenças. Em conversa com o “diretor” do colégio, há alunos que tem pais de outros países ou que viajam bastante, então o campo de contatos desse universo infantil mostra-se ampliado, com a influência primeira da formação familiar destas.
Quando a escola se propõe a dar aulas de “Dança e Expressão Corporal”, o sítio eletrônico traz as características desta –até porque não tivemos oportunidade de efetivamente participar, e fugiríamos do foco desta pesquisa- afirmando que “Os novos currículos escolares da primeira infância que trazem a tendência de incluírem artes criativas têm ganhado lugar de honra dentro da educação. As crianças aprendem pelas experiências do próprio corpo a agirem livremente no espaço em que vivem, interagindo com as pessoas que as cercam.” O ambiente escolar desta escola específica tem por objetivo deixar seus alunos ambientados de maneira mais livre possível, mas como uma pesquisa que busca relativizar seus objetos de estudo, é preciso apontar aqui quais as formas de limitações de ambientes “escolarizantes”. Uma frase da professora de Dança da TicTacToe, nos aponta para esse questionamento: “Eu acho que a escola é principalmente um lugar que vai ensinando desde muito criança, ela entra com três [anos], aí ela entra na salinha, senta na cadeirinha, por mais que ela tenha tempo pra brincar, ela sabe que tem o momento de sentar, e ela sabe que conforme ela vai crescendo vai mudando a sala, o jeito de se relacionar com os outros dentro e fora da sala.”


Considerações Finais
A partir da análise da discussão bibliográfica fica evidente que o ponto de liminaridade, em um processo de escolarização ocidental padrão, ocorre no período dos cinco aos seis anos de idade e é nessa passagem que o pensamento infantil deixa de ser sincrônico, híbrido e passa a se constituir dentro dos valores de cientificidade da sociedade ocidental moderna.


Bibliografia

COHN, Clarice. Noções sociais de infância e desenvolvimento infantil. In Cadernos de Campo v.9, ano 10, p13-26, 2000
GUSMÃO, Neusa. Antropologia e Educação: origens de um diálogo. In Caderno CEDES v.8, n.43, 1997
TASSINARI, Antonella. Múltiplas infâncias: o que a criança indígena pode ensinar para quem já foi à escola- ou a Sociedade contra a Escola. Comunicação apresentada à 33ª ANPOCS, 2009
VALENCIO, Norma et al. A heterogeneidade representacional na Amazônia nos desenhos de crianças nativas. In Somanlu, ano 7, n.1, 2007
LÉVI-STRAUSS, Claude - Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaios de Antropologia simétrica. 1994
DUMONT, Louis. 1985. O Individualismo: Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna. Ed. Rocco, Rio de Janeiro.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Alguns aspectos do pensamento Yawalapití (Alto Xingu) : classificações e transformações. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro : Marco Zero ; UFRJ, 1987
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar. 1978
CALDEIRA, Laura Bianca.O conceito de infância no decorrer da história popular. 2009

Webgrafia

Espaço Corporal. Disponível em:
TIc Tac Toe. Disponível em:
Nova Escola. Pensamento Infantil- O Desenho da Criança. Disponível em:
Nova Escola. Pensamento Infantil- Os fenômenos naturais. Disponível em:



Patricia Polastri; Priscila Rabelo










quarta-feira, 9 de março de 2011

Psicodália 2011



Excepcionalmente sensacional!

Ouvir frase como “Isso tudo é muito lindo”, “Mais um ,mais dois, mais três” até “é só alegria” em exatamente 5 dias foi alucinadamente e sem discussões uma das minhas melhores experiências, trocas de vivências, energias, sensações, e sentimentos que eu nunca havia sentido antes. Coisas que nem a ciência, nem a religião ou qualquer teoria antropológica poderia explicar.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Mesmo ausente presente!


Me acompanhando pelas madrugadas entre risos e discusões astrológicas, entre desabafos e suspiros pelo simples fato de conseguir entender a importância das pequenas coisas!

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Devaneios


Então tudo que antes havia se perdido na escuridão dos pensamentos, reaparece de forma e conteúdo diferente. Logo só resta uma coisa a fazer...




Experimentar!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Como comprovar uma teoria...



Morando há quase quatro anos em uma cidade que grande parte dos universitários são do gênero masculino e cursam engenharia...
Ou melhor eu poderia focar ainda mais...Sendo uma mulher no meio de um monte de engenheiros no ritimo da dança de acasalamento...
O que importa é: Comprovei uma teoria!
Pensando a partir de reflexões antropológicas fica facil entender o distanciamento com seus diferentes. É asssim em toda sociedade. Temos receios e até um pré conceito sobre determinados esteriótipos.
E não adianta dizer: " Esse lance de preconceito é coisa do passado de gente sem informação". Concordo em alguns casos... Preconceito de cor, gênero, classe social sim. Esses eu abomino. Mas pensando em parâmetros menos polêmicos eis que denuncio o meu pré-conceito: Engenheiros!
Então em um sabado a noite, geralmente são nos sabados a noite que tudo pode acontecer, até porque isso já foi cantado, escrito, virou nome de filme...Enfim prestes a completar mais um ano de uma vida tumultuado decido fazer algo bem diferente do que costumo fazer. Ir à uma balada "fita"*. Fiz o que geralmente se faz de costume: dancei, bebi, bebi mais, bebi mais um pouco, comecei a fazer amizade com desconhecidos e sai com alguem.
O problema da noite toda se resume a quem seria esse alguem. Esse alguem era um engenheiro e indo contra todos os meus pré conceitos estabelecidos até ali resolvi dar uma chance a minha imaginação...
Quando digo engenheiro quero deixar bem claro, toda regra tem sua exceção e sim eu conheço algumas. Mas como toda pesquisa deve ter suas conclusões baseadas na repetição de dados ocorridos em determinado tempo e lugar acabei comprovando uma teoria.

Em primeiro lugar nunca sai com alguêm que diga " Eu SEMPRE consigo TUDO o que eu quero"
Segundo nunca saia com um cara que aposte com você que ele não vai querer te comer, sim ele vai tentar te comer
Terceiro nunca dê seu numero de telefone que te chame de gostosa mais de 20 vezes na mesma noite ( mesmo você fazendo movimentos pudinzinho com os inumeros furos provindos das gorduras localizadas das suas pernas.
e por último nunca sai com um cara que pague a sua conta e da sua amiga afirmando ainda não não vai querer te comer.
O fato é que apesar de todas essas evidencias ainda sim o efeito "alcool no sangue foi mais forte".
Depois disso deixo que tirem as próprias conclusões a partir das trocas de mensagens...
Coleta de dados no trabalho de Campo

Msg 01: Surpresa? E agora?! Ficamos na dependência do acaso, ou marcamos? Falaste q se eu tivesse boa memoria... Até paixão! Fulano.
Resp: Bom pra vc que tem boa memoria. Eu sempre dependo do acaso haha.bj
Msg 02: Uh ...q grossa ! Ta braba? Tranquilo então bonita, mas, como tuas opiniões variam rápido hein tche!Não dá pra levar muito “ao pé da letra” o que tu falas então?
Resp: Eu sou volatil e inconstante.
Msg 03: Olha... tens meu numero tb! A hr q quiser, liga. Ou , p/ quem gosta tanto d sexo, quando quiser ser D FATO bem comida , liga. Pq uma foda bem dada tu não conhece, ctz!
(OBS: De fato eu já fui bem comida, a ponto de saber que seria um disperdicio de tempo transar com você)
Msg 04:Prova anjo, ou foge, sei la! Mas tenho a sensação de que essa é uma surra q tu nunk vai saber o saber, infelizmente!Certo? Isso não muda nada , gnt Boa.
( OBS: Surras com sabor? Unh..rs)
Resp: ha ha ha
Msg 05: Neguinha? Braba? Seguinte: estão afim de sair conosco, comer uma pizza ? Bju, lindinha fica braba comigo não!
( OBS: Se eu tenho cor de bunda azeda que raios de caralho a quatro esse cara me chama de neguinha?)
Resp: Não to brava! Combinei de sair com um brother meu.
Msg 06: Um brother se deu bem, muito bem pra essa noite então. Fico triste , mas ta tranquilo! Nem vou mais encomodar, pq ja vi q não vais sair comigo msm , então ...foi um prazer! Boa festinhas pra vc. Bjs
Msg 07: Agora ANTES de perguntar o nome de uma menina, vou perguntar se ela é MEMORIA ROM : volatil e inconstante! Hehe. Tu es muito bacana guria , é uma pena!
Resp: Pena do q? Qdo souber de alguma festa legal do um toq!
( OBS: Quem tem pena é galinha...ahahahaahahaahah)
Msg 08: Não, não... é q pelo q parece foi so isso msm. E pena, é por tu não ter interesse em mim. Afinal, eu queria um pouco mais! E pena tambem que pra ti foi o suficiente, infelizmente! Prefiro uma festa particular aqui em casa eu e tu.
Msg 09: Tens planos pra hoje minha florzinha d maconha?! Arruma um espaço na tua agenda pra mim. Bjs
Resp: mas é claro que tenho planos vou sair com meu professor de ginastica
(OBS: Nessa altura do campeonato ele ainda não entendeu)
Msg 10: Tche e comigo tu não vai sair não?! Hehe. D repente eu ja esteja sendo invasivo dimais neh?! Não tem espeço pra mim então é isso?
Resp: Exatamente.
(OBS: A próxima msg é de dar dó, depois de uma leve rejeição, vem o contra ataque deprimente de um desesperado por atenção)
Msg 11: hehe. Tenho pena de ti e d quem t criou assim, pobre coitado! A proposito: teu problema com engenheiro é QI e STATUS, infinitamentes superiores! Boa sorte tadinha. Bju
Resp: hahahahaha
(OBS: Concordo no Q.I , o de um engenheiro é inferior e isso foi facil de comprovar até agora)
Msg 12: Mencionei que sou casado?! To a trabalho, sexta volto pro RS. Foi um prazer! Aqui findamos o assunto. Apesar de tu NÃO VALER aqueles 290 reais foi bacana!Nda pessoal.
Resp: de boa você é muito engenheiro. Alias acho que você merece saber. Não transei com você porque tinha certezza q éra um idiota o bom é que foi o motivo de riso entre meus brothers
(OBS: Olha a matématica : Agora eu teria que pagar por mim e por ele depois de toda uma encenação de cavalherismo rudimentar)
Msg 13: Não entendi a metafora , mas eng eu sou e bem sucedido. oLha, até ia dar minha conta pra p devolver 130 q as cabem . Mas vai fazer muita falte neh chinelona?! Então deixo quito, presente.
Resp: Aff de boa, você entrou no topo da lista dos caras mais babacas q eu ja sai. Parabens.
( OBS: Quem tem o Q.I alto agora, como assim não entendeu que foi motivo de chacota )
Msg 14:Nem quero mudar o que acha a meu respeito, pq pra mim tanto faz. Nda pessoal mesmo, es uma guria legal, so to meio de mal com a vida , desculpa qualquer coisa dita ta? Fica bem.
Conclusão: LAMENTÁVEL.





quarta-feira, 22 de setembro de 2010


"E então será preciso estar dentro do sistema para poder subvertê-lo um dia..."



Seja a mudança que você deseja ver no mundo.

Mahatma Gandhi

A verdade sobre a Maconha (matéria da revista Superinteressante)


A verdade sobre a maconha
A proibição da cannabis pode ter mais a ver com interesses morais, políticos e econômicos do que com argumentos científicos. Saiba mais sobre os efeitos dela e sua influência na história da civilização.

Por que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério à saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa planta foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários freqüentes de maconha no começo do século XX. Deve muito aos interesses de indústrias poderosas dos anos 20, que vendiam tecidos sintéticos e papel e queriam se livrar de um concorrente, o cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados Unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão (e principalmente protestante-puritano), que não aceita a idéia do prazer sem merecimento - pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação.

Não é fácil falar desse assunto - admito que levei um dia inteiro para compor o parágrafo acima. O tema é tão carregado de ideologia e as pessoas têm convicções tão profundas sobre ele que qualquer convite ao debate, qualquer insinuação de que estamos lidando mal com o problema já é interpretada como "apologia às drogas" e, portanto, punível com cadeia. O fato é que, apesar da desinformação dominante, sabe-se muito sobre a maconha. Ela é cultivada há milênios e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o assunto. O que tentei fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade reuniu sobre a droga nos milênios em que convive com ela.



Por que é proibido?

"O corpo esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de mergulhar do quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que ela tinha se suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico conhecido na América como marijuana e na história como haxixe. Usado na forma de cigarros, ele é uma novidade nos Estados Unidos e é tão perigoso quanto uma cascavel." Começa assim a matéria "Marijuana: assassina de jovens", publicada em 1937 na revista American Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do governo chamado _______________. Se a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é exagero dizer que o maior responsável foi ele.

Nas primeiras décadas do século XX, a maconha era liberada, embora muita gente a visse com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era "coisa de negro", fumada nos terreiros de candomblé para facilitar a incorporação e nos confins do país por agricultores depois do trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos intelectuais boêmios. Nos Estados Unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos mexicanos - meio milhão deles cruzaram o Rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era relegado a classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca.

Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios - de xaropes para tosse a pílulas para dormir - continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos também dependia da cannabis - o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que exigissem um material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na Europa e nos Estados Unidos.

Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados Unidos decretaram a proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, que durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública americana - reprimindo o tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí, também, que a maconha entrou na vida de muita gente - e não só dos mexicanos. "A proibição do álcool foi o estopim para o 'boom' da maconha", afirma o historiador inglês Richard Davenport-Hines, especialista na história dos narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (A busca do esquecimento, ainda sem versão para o Brasil). "Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha começaram a proliferar", escreveu.

Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa recessão. No sul do país, corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos, o que seria uma vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações de que a droga induzia ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um americano puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha) e ao crime (com a crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é inocente disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a substância. Nessa época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de jazz, que afirmavam ficar mais criativos depois de fumar.

Anslinger agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio, criou o FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para lidar com drogas), ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro, Anslinger passou a ser o responsável pela política de drogas do país. E quanto mais substâncias fossem proibidas, mais poder ele teria.

Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante Du Pont. "A Du Pont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da indústria do cânhamo", afirma o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No Clothes (O imperador está nu, ainda sem tradução). Nos anos 20, a empresa estava desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o cânhamo.

Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da semente do mercado. "A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon", afirma o jurista Wálter Maierovitch, especialista em tráfico de entorpecentes e ex-secretário nacional antidrogas.

Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William Randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos Estados Unidos. Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia, onde recebia artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas na piscina coberta adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos. Parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a Revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho Villa (que, aliás, faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram uma enorme propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar eucaliptos e outras árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que a maconha americana fosse destruída - levando com ela a indústria de papel de cânhamo.

Hearst iniciou, nos anos 30, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60% dos crimes eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época, surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que, se não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele queria uma palavra que soasse bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger era presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que, sob o efeito da maconha, "algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem crimes violentos".

Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito da espécie Cannabis sativa de existir.

Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a freqüentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONU, propondo tratados cada vez mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar líderes de vários países e a levar a eles os mesmos argumentos aterrorizantes que funcionaram com os americanos. Não foi difícil convencer os governos - já na década de 20 o Brasil adotava leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.

"A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das minorias", diz o cientista político Thiago Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é coisa de mexicano, mexicanos são uma classe incômoda. "Como não é possível proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia", diz Thiago. Assim, é possível manter sob controle todos os mexicanos - eles estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso a proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais esse instrumento para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder enquadrar seus imigrantes.

A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados Unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou que as drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade e, portanto, eram necessárias ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. "Isso abriu espaço para intervenções militares americanas", diz Maierovitch. "Virou um pretexto oportuno para que os americanos possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos."

Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a maconha entre elas. Um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy demitiu Anslinger - depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. Um grupo formado para analisar os efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sendo exagerados e que a tese de que ela levava a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo contrário. O presidente Richard Nixon endureceu mais a lei, declarou "guerra às drogas" e criou o DEA (em português, Escritório de Coação das Drogas), um órgão ainda mais poderoso que o FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia.



Maconha faz mal?

Taí uma pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de pesquisas, a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos extremos. O uso moderado não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto começou em 1894, quando a Índia fazia parte do Império Britânico. Havia, então, a desconfiança de que o bhang, uma bebida à base de maconha muito comum na Índia, causava demência. Grupos religiosos britânicos reivindicavam sua proibição. Formou-se a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis, que passou dois anos investigando o tema. O relatório final desaconselhou a proibição: "O bhang é quase sempre inofensivo quando usado com moderação e, em alguns casos, é benéfico. O abuso do bhang é menos prejudicial que o abuso do álcool".

Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia, encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas escolhidos por ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e concluíram: "O uso prolongado da droga não leva à degeneração física, mental ou moral". O trabalho passou despercebido no meio da barulheira proibicionista de Anslinger.

A partir dos anos 60, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros governos. Relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados Unidos aconselharam um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente para forçar uma mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e suas conseqüências foi realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda decidiu parar de prender usuários de maconha desde que eles comprassem a droga em cafés autorizados. Resultado: o índice de usuários continua comparável aos de outros países da Europa. O de jovens dependentes de heroína caiu - estima-se que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas.

Nos últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados - às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em convencer os outros da sua opinião. Veja abaixo um resumo do que se sabe:

Câncer
Não se provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traquéia, boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por muito tempo, os riscos do cigarro foram negligenciados e só nas últimas duas décadas ficou claro que havia uma bomba-relógio armada - porque os danos só se manifestam depois de décadas de uso contínuo. Há o temor de que uma bomba semelhante esteja para explodir no caso da maconha, cujo uso se popularizou a partir dos anos 60. O que se sabe é que o cigarro de maconha tem praticamente a mesma composição de um cigarro comum - a única diferença significativa é o princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol, ou THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais arriscados que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura a fumaça por mais tempo no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não aumenta os efeitos da droga).

Em compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e pára ou reduz o consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir drasticamente o risco de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que é o mais comum, não precisa se preocupar com um aumento grande do risco de câncer. Quem fuma mais de um baseado por dia há mais de 15 anos deve pensar em parar.

Dependência
Algo entre 6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso compulsivo da maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é: será que a maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape. "Dependência de maconha não é problema da substância, mas da pessoa", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro do dependente de maconha: em geral, ele é jovem, quase sempre ansioso e eventualmente depressivo. Pessoas que não se encaixam nisso não desenvolvem o vício. "E as que se encaixam podem tanto ficar dependentes de maconha quanto de sexo, de jogo, de internet", diz.

Muitos especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa - na medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram variedades como o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de maconha alterada geneticamente no Leste europeu - a engenharia genética é usada para aumentar a potência, o que poderia aumentar o potencial de dependência. Segundo o farmacólogo Leslie Iversen, autor do ótimo The Science of Marijuana (A ciência da maconha, sem tradução para o português) e consultor para esse tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses temores são exagerados e o aumento da concentração de THC não foi tão grande assim.

Para além dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal. Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. "O sujeito com 15 anos não está com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser muito danoso a ele", diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam maconha é a síndrome amotivacional, nome que se dá à completa perda de interesse que a droga causa em algumas pessoas. A síndrome amotivacional é muito mais freqüente em jovens e realmente atrapalha a vida - é quase certeza de bomba na escola e de crise na família.

Danos cerebrais
"Maconha mata neurônios." Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral - às vezes com pesquisas que ministravam doses de elefante em ratinhos -, mas nada foi encontrado.

Muitas experiências foram feitas em busca de danos nas capacidades cognitivas do usuário de maconha. A maior preocupação é com a memória. Sabe-se que o usuário de maconha, quando fuma, fica com a memória de curto prazo prejudicada. São bem comuns os relatos de pessoas que têm idéias que parecem geniais durante o "barato", mas não conseguem lembrar-se de nada no momento seguinte. Isso acontece porque a memória de curto prazo funciona mal sob o efeito de maconha e, sem ela, as memórias de longo prazo não são fixadas (é por causa desse "desligamento" da memória que o usuário perde a noção do tempo). Mas esse dano não é permanente. Basta ficar sem fumar que tudo volta a funcionar normalmente. O mesmo vale para o raciocínio, que fica mais lento quando o usuário fuma muito freqüentemente.

Há pesquisas com usuários "pesados" e antigos, aqueles que fumam vários baseados por dia há mais de 15 anos, que mostraram que eles se saem um pouco pior em alguns testes, principalmente nos de memória e de atenção. As diferenças, no entanto, são sutis. Na comparação com o álcool, a maconha leva grande vantagem: beber muito provoca danos cerebrais irreparáveis e destrói a memória.

Coração
O uso de maconha dilata os vasos sangüíneos e, para compensar, acelera os batimentos cardíacos. Isso não oferece risco para a maioria dos usuários, mas a droga deve ser evitada por quem sofre do coração.

Infertilidade
Pesquisas mostraram que o usuário freqüente tem o número de espermatozóides reduzido. Ninguém conseguiu provar que isso possa causar infertilidade, muito menos impotência. Também está claro que os espermatozóides voltam ao normal quando se pára de fumar.

Depressão imunológica
Nos anos 70, descobriu-se que o THC afeta os glóbulos brancos, células de defesa do corpo. No entanto, nenhuma pesquisa encontrou relação entre o uso de maconha e a incidência de infecções.

Loucura
No passado, acreditava-se que maconha causava demência. Isso não se confirmou, mas sabe-se que a droga pode precipitar crises em quem já tem doenças psiquiátricas.

Gravidez
Algumas pesquisas apontaram uma tendência de filhos de mães que usaram muita maconha durante a gravidez de nascer com menor peso. Outras não confirmaram a suspeita. De qualquer maneira, é melhor evitar qualquer droga psicoativa durante a gestação. Sem dúvida, a mais perigosa delas é o álcool.



Maconha faz bem?

No geral, não. A maioria das pessoas não gosta dos efeitos e as afirmações de que a erva, por ser "natural", faz bem, não passam de besteira. Outros adoram e relatam que ela ajuda a aumentar a criatividade, a relaxar, a melhorar o humor, a diminuir a ansiedade. É inevitável: cada um é um.

O uso medicinal da maconha é tão antigo quanto a maconha. Hoje há muitas pesquisas com a cannabis para usá-la como remédio. Segundo o farmacólogo inglês Iversen, não há dúvidas de que ela seja um remédio útil para muitos e fundamental para alguns, mas há um certo exagero sobre seus potenciais. Em outras palavras: a maconha não é a salvação da humanidade. Um dos maiores desafios dos laboratórios é tentar separar o efeito medicinal da droga do efeito psicoativo - ou seja, criar uma maconha que não dê "barato". Muitos pesquisadores estão chegando à conclusão de que isso é impossível: aparentemente, as mesmas propriedades químicas que alteram a percepção do cérebro são responsáveis pelo caráter curativo. Esse fato é uma das limitações da maconha como medicamento, já que muitas pessoas não gostam do efeito mental. No Brasil, assim como em boa parte do mundo, o uso médico da cannabis é proibido e milhares de pessoas usam o remédio ilegalmente. Conheça alguns dos usos:

Câncer
Pessoas tratadas com quimioterapia muitas vezes têm enjôos terríveis, eventualmente tão terríveis que elas preferem a doença ao remédio. Há medicamentos para reduzir esse enjôo e eles são eficientes. No entanto, alguns pacientes não respondem a nenhum remédio legal e respondem maravilhosamente à maconha. Era o caso do brilhante escritor e paleontólogo Stephen Jay Gould, que, no mês passado, finalmente, perdeu uma batalha de 20 anos contra o câncer (veja mais sobre ele na página 23). Gould nunca tinha usado drogas psicoativas - ele detestava a idéia de que interferissem no funcionamento do cérebro. Veja o que ele disse: "A maconha funcionou como uma mágica. Eu não gostava do 'efeito colateral' que era o borrão mental. Mas a alegria cristalina de não ter náusea - e de não experimentar o pavor nos dias que antecediam o tratamento - foi o maior incentivo em todos os meus anos de quimioterapia".

Aids
Maconha dá fome. Qualquer um que fuma sabe disso (aliás, esse é um de seus inconvenientes: ela engorda). Nenhum remédio é tão eficiente para restaurar o peso de portadores do HIV quanto a maconha. E isso pode prolongar muito a vida: acredita-se que manter o peso seja o principal requisito para que um soropositivo não desenvolva a doença. O problema: a cannabis tem uma ação ainda pouco compreendida no sistema imunológico. Sabe-se que isso não representa perigo para pessoas saudáveis, mas pode ser um risco para doentes de Aids.

Esclerose múltipla
Essa doença degenerativa do sistema nervoso é terrivelmente incômoda e fatal. Os doentes sentem fortes espasmos musculares, muita dor e suas bexigas e intestinos funcionam muito mal. Acredita-se que ela seja causada por uma má função do sistema imunológico, que faz com que as células de defesa ataquem os neurônios. A maconha alivia todos os sintomas. Ninguém entende bem por que ela é tão eficiente, mas especula-se que tenha a ver com seu pouco compreendido efeito no sistema imunológico.

Dor
A cannabis é um analgésico usado em várias ocasiões. Os relatos de alívio das cólicas menstruais são os mais promissores.

Glaucoma
Essa doença caracteriza-se pelo aumento da pressão do líquido dentro do olho e pode levar à cegueira. Maconha baixa a pressão intraocular. O problema é que, para ser um remédio eficiente, a pessoa tem que fumar a cada três ou quatro horas, o que não é prático e, com certeza, é nocivo (essa dose de maconha deixaria o paciente eternamente "chapado"). Há estudos promissores com colírios feitos à base de maconha, que agiriam diretamente no olho, sem afetar o cérebro.

Ansiedade
Maconha é um remédio leve e pouco agressivo contra a ansiedade. Isso, no entanto, depende do paciente. Algumas pessoas melhoram após fumar; outras, principalmente as pouco habituadas à droga, têm o efeito oposto. Também há relatos de sucesso no tratamento de depressão e insônia, casos em que os remédios disponíveis no mercado, embora sejam mais eficientes, são também bem mais agressivos e têm maior potencial de dependência.

Dependência
Dois psiquiatras brasileiros, Dartiu Xavier e Eliseu Labigalini, fizeram uma experiência interessante. Incentivaram dependentes de crack a fumar maconha no processo de largar o vício. Resultado: 68% deles abandonaram o crack e, depois, pararam espontaneamente com a maconha, um índice altíssimo. Segundo eles, a maconha é um remédio feito sob medida para combater a dependência de crack e cocaína, porque estimula o apetite e combate a ansiedade, dois problemas sérios para cocainômanos. Dartiu e Eliseu pretendem continuar as pesquisas, mas estão com problemas para conseguir financiamento - dificilmente um órgão público investirá num trabalho que aposte nos benefícios da maconha.



O passado

O primeiro registro do contato entre o Homo sapiens e a Cannabis sativa é de 6 000 anos atrás. Trata-se da marca de uma corda de cânhamo impressa em cacos de barro, na China. O emprego da fibra, não só em cordas mas também em vários tecidos e, depois, na fabricação de papel, é um dos mais antigos usos da maconha. Graças a ele, a planta, original da região ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia, tornou-se a primeira cultivada pelo homem com usos não alimentícios e espalhou-se por toda a Ásia e depois pela Europa e África.

Mas há um uso da maconha que pode ser tão antigo quanto o da fibra do cânhamo: o medicinal. Os chineses conhecem há pelo menos 2 000 anos o poder curativo da droga, como prova o Pen-Ts'ao Ching, considerado a primeira farmacopéia conhecida do mundo (farmacopéia é um livro que reúne fórmulas e receitas de medicamentos). O livro recomenda o uso da maconha contra prisão-de-ventre, malária, reumatismo e dores menstruais. Também na Índia, a erva já há milênios é parte integral da medicina ayurvédica, usada no tratamento de dezenas de doenças. Sem falar que ela ocupa um lugar de destaque na religião hindu. Pela mitologia, maconha era a comida favorita do deus Shiva, que, por isso, viveria o tempo todo "chapado". Tomar bhang seria uma forma de entrar em comunhão com Shiva.

O Hinduísmo não é a única religião a dar destaque para a cannabis. Para os budistas da tradição Mahayana, Buda passou seis anos comendo apenas uma semente de maconha por dia. Sua iluminação teria sido atingida após esse período de quase-jejum. Da Índia, a maconha migrou para a Mesopotâmia, ainda em tempos pré-cristãos, e de lá para o Oriente Médio. Portanto, ela já estava presente na região quando começou a expansão do Império Árabe. Com a proibição do álcool entre o povo de Maomé, iniciou-se uma acalorada discussão sobre se a maconha deveria ser banida também. Por séculos, consumiu-se cannabis abundantemente nas terras muçulmanas até que, na Idade Média, muitos islâmicos abandonaram o hábito. A exceção foram os sufi, membros de uma corrente considerada mais mística e esotérica do Islã, que, até bem recentemente, consideravam a cannabis fundamental em seus ritos.

Os gregos usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios, assim como, depois, os romanos. Sabe-se que o Império Romano tinha pelo menos conhecimento dos poderes psicoativos da maconha. O historiador latino Tácito, que viveu no século I d.C., relata que os citas, um povo da atual Turquia, tinham o costume de armar uma tenda, acender uma fogueira e queimar grande quantidade de maconha. Daí ficavam lá dentro, numa versão psicodélica do banho turco.

Graças ao contato com os árabes, grande parte da África conheceu a erva e incorporou-a aos seus ritos e à sua medicina - dos países muçulmanos acima do Saara até os zulus da África do Sul. A Europa toda também passou a plantar maconha e usava extensivamente a fibra do cânhamo, mas há raríssimos registros do seu uso como psicoativo naquele continente. Pode ser que isso se deva ao clima. O THC é uma resina produzida pela planta para proteger suas folhas e flores do sol forte. Na fria Europa, é possível que tenha se desenvolvido uma variação da Cannabis sativa com menos THC, já que não havia tanto sol para ameaçar o arbusto.

O fato é que, na Renascença, a maconha se transformou no principal produto agrícola da Europa. E sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande participação na mudança de mentalidade que ocorreu no século XV. Os primeiros livros depois da revolução de Gutemberg foram impressos em papel de cânhamo. As pinturas dos gênios da arte eram feitas em telas de cânhamo (canvas, a palavra usada em várias línguas para designar "tela", é uma corruptela holandesa do latim cannabis). E as grandes navegações foram impulsionadas por velas de cânhamo - segundo o autor americano Rowan Robinson, autor de O Grande Livro da Cannabis, havia 80 toneladas de cânhamo, contando o velame e as cordas, no barco comandado por Cristóvão Colombo em 1496. Ou seja, a América foi descoberta graças à maconha. Irônico.

Sobre as luzes da Renascença caíram as sombras da Inquisição - um período em que a Igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando hereges em seu tribunal e condenando bruxas à fogueira. "As bruxas nada mais eram do que as curandeiras tradicionais, principalmente as de origem celta, que utilizavam plantas para tratar as pessoas, às vezes plantas com poderes psicoativos", diz o historiador Henrique Carneiro, especialista em drogas da Universidade Federal de Ouro Preto. Não há registros de que maconheiros tenham sido queimados no século XVI - inclusive porque o uso psicoativo da maconha era incomum na Europa -, mas é certo que cristalizou-se naquela época uma antipatia cristã por plantas que alteram o estado de consciência. "O Cristianismo afirmou seu caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida é o álcool, associado com o sangue de Cristo", diz Henrique.

Em 1798, as tropas de Napoleão conquistaram o Egito. Até hoje não estão muito claras as razões pelas quais o imperador francês se aventurou no norte da África (vaidade, talvez). Mas pode ser que o principal motivo fosse a intenção de destruir as plantações de maconha, que abasteciam de cânhamo a poderosa Marinha da Inglaterra. O fato é que coube a Napoleão promulgar a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os egípcios eram fumantes de haxixe, a resina extraída da folha e da flor da maconha constituída de THC concentrado. Mas a proibição saiu pela culatra. Os egípcios ignoraram a lei e continuaram fumando como sempre fizeram. Em compensação, os europeus ouviram falar da droga e ela rapidamente virou moda na Europa, principalmente entre os intelectuais. "O haxixe está substituindo o champagne", disse o escritor Théophile Gautier em 1845, depois da conquista da Argélia, que, na época, era outro grande consumidor de THC.

No Brasil, a planta chegou cedo, talvez ainda no século XVI, trazida pelos escravos (o nome "maconha" vem do idioma quimbundo, de Angola. Mas, até o século XIX, era mais usual chamar a erva de fumo-de-angola ou de diamba, nome também quimbundo). Por séculos, a droga foi tolerada no país, provavelmente fumada em rituais de candomblé (teria sido o presidente Getúlio Vargas que negociou a retirada da maconha dos terreiros, em troca da legalização da religião). Em 1830, o Brasil fez sua primeira lei restringindo a planta. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na cidade e determinou que "os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 000 réis, e os escravos e demais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia." Note que, naquela primeira lei proibicionista, a pena para o uso era mais rigorosa que a do traficante. Há uma razão para isso. Ao contrário do que acontece hoje, o vendedor vinha da classe média branca e o usuário era quase sempre negro e escravo.



O presente

Segundo dados da ONU, 147 milhões de pessoas fumam maconha no mundo, o que faz dela a terceira droga psicoativa mais consumida do mundo, depois do tabaco e do álcool. A droga é proibida em boa parte do mundo, mas, desde que a Holanda começou a tolerá-la, na década de 70, alguns outros países europeus seguiram os passos da descriminalização. Itália e Espanha há tempos aceitam pequenas quantidades da erva - embora a Espanha esteja abandonando a posição branda e haja projetos de lei, na Itália, no mesmo sentido. O Reino Unido acabou de anunciar que descriminalizou o uso da maconha - a partir do ano que vem, a droga será apreendida e o portador receberá apenas uma advertência verbal. Os ingleses esperam, assim, poder concentrar seus esforços na repressão de drogas mais pesadas.

No ano passado, Portugal endureceu as penas para o tráfico, mas descriminalizou o usuário de qualquer droga, desde que ele seja encontrado com quantidades pequenas. Porte de drogas virou uma infração administrativa, como parar em lugar proibido.

Nos últimos anos, os Estados Unidos também mudaram sua forma de lidar com as drogas. Dentro da tendência mundial de ver a questão mais como um problema de saúde do que criminal, o país, em vez de botar na cadeia, obriga o usuário a se tratar numa clínica para dependentes. "Essa idéia é completamente equivocada", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, refletindo a opinião de muitos especialistas. "Primeiro porque nem todo usuário é dependente. Segundo, porque um tratamento não funciona se é compulsório - a pessoa tem que querer parar", diz. No sistema americano, quem recusa o tratamento ou o abandona vai para a cadeia. Portanto, não é uma descriminalização. "Chamo esse sistema de 'solidariedade autoritária'", diz o jurista Maierovitch. O Brasil planeja adotar o mesmo modelo.



O futuro

Há possibilidades de uma mudança no tratamento à maconha? "No Brasil, não é fácil", diz Maierovitch, que, enquanto era secretário nacional antidrogas do governo de Fernando Henrique Cardoso, planejou a descriminalização. "A lei hoje em vigor em Portugal foi feita em conjunto conosco, com o apoio do presidente", afirma. A idéia é que ela fosse colocada em prática ao mesmo tempo nos dois países. Segundo Maierovitch, Fernando Henrique mudou de idéia depois. O jurista afirma que há uma enorme influência americana na política de drogas brasileira. O fato é que essa questão mais tira do que dá votos e assusta os políticos - e não só aqui no Brasil. O deputado federal Fernando Gabeira, hoje no Partido dos Trabalhadores, é um dos poucos identificados com a causa da descriminalização. "Pretendo, como um primeiro passo, tentar a legalização da maconha para uso médico", diz. Mas suas idéias estão longe de ser unanimidade mesmo dentro do seu partido.

No remoto caso de uma legalização da compra e da venda, haveria dois modelos possíveis. Um seria o monopólio estatal, com o governo plantando e fornecendo as drogas, para permitir um controle maior. A outra possibilidade seria o governo estabelecer as regras (composição química exigida, proibição para menores de idade, proibição para fumar e dirigir), cobrar impostos (que seriam altíssimos, inclusive para evitar que o preço caia muito com o fim do tráfico ilegal) e a iniciativa privada assumir o lucrativo negócio. Não há no horizonte nenhum sinal de que isso esteja para acontecer. Mas a Super apurou, em consulta ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, que a Souza Cruz registrou, em 1997, a marca Marley - fica para o leitor imaginar que produto a empresa de tabaco pretende comercializar com o nome do ídolo do reggae.



Frases

"A popularidade da maconha explodiu em 1920, quando o álcool foi proibido"

"O consumo moderado de maconha não provoca nenhum dano sério à saúde"

"Das cordas às velas, havia 80 toneladas de cânhamo no navio de Colombo"



Para saber mais

Na livraria

O Grande Livro da Cannabis, Rowan Robinson, Jorge Zahar, 1999

A Maconha, Fernando Gabeira, Publifolha, 2000

Science of Marijuana, Leslie L. Iversen, Oxford, Ingleterra, 2000

The Pursuit of Oblivion: A Global History of Narcotics 1500-2000, Richard Davenport-Hines, Weidenfeld & Nicolson, Ingleterra, 2001

Diamba Sarabamba, Anthony Henman e Osvaldo Pessoa Jr. (organizações), Ground, 1986

Plantas de los Dioses, Richard Evans Schultes e Albert Hofmann, Fondo de Cultura Económica, México, 1982

The Emperor Wears no Clothes, Jack Herer, Green Planet Company, Inglaterra, 1994

Green Gold the Tree of Life, Chris Bennett, Lynn e Osbum, Judy Osbum, Access, EUA, 1995

Amores e Sonhos da Flora, Henrrique Carneiro, Xamã, 2002